O tribunal provincial do Huambo condenou hoje a 18 anos de prisão o antigo vice-líder da seita religiosa Adventista do Sétimo Dia A Luz do Mundo, Justino Tchipango, pena com a qual a defesa concordou. O líder, José Julino Kalupeteka, já fora condenado a 28 anos de prisão.
Em causa está o homicídio de nove polícias, em Abril de 2015, no monte Sumi, município da Caála, província do Huambo, onde os fiéis se encontravam acampados sob a liderança do fundador da seita, José Julino Kalupeteka, que foi condenado, em Abril de 2016, a 28 anos de prisão, por nove crimes de homicídio qualificado e sete de homicídio frustrado.
Justino Tchipango, de 32 anos, foi detido somente em Outubro de 2017, tendo sido acusado de co-autoria na morte dos nove oficiais da Polícia angolana e de um homicídio qualificado, sob forma frustrada, um crime de resistência e por último de dano material não previsto especificamente.
Na leitura da sentença de um julgamento que começou a 12 de Junho, o juiz referiu que, por cada um dos nove crimes de homicídio qualificado, Justino Tchipango foi condenado na pena de 22 anos de prisão maior, e por cada um dos crimes, bem como pelo crime qualificado na forma frustrada, a 18 anos de prisão maior.
Segundo o juiz, feito o cúmulo jurídico, o réu foi condenado à pena única de 24 anos de prisão maior.
Contudo, “em função do perdão das penas, consagrado no artigo 2.º da Lei da Amnistia, Lei n.º11/16 de Agosto, vai o réu condenado na pena de 18 anos de prisão maior”, afirmou o juiz.
A pena estabelece ainda o pagamento de 50 mil kwanzas (170 euros) de taxa de justiça, 5.000 kwanzas (17 euros) de emolumentos ao defensor oficioso, dois milhões de kwanzas (6,7 mil euros) correspondentes à sua quota-parte na responsabilidade civil solidária com os demais co-autores dos factos, que deram causa equivalente a 200 mil kwanzas para cada um dos familiares das vítimas.
Em declarações à imprensa, o advogado de defesa, Paulo Sankanjila, manifestou a sua satisfação pela pena aplicada pelo tribunal.
“A segunda parte do nosso pedido foi que ele fosse julgado com base na Lei da Amnistia e isso foi cumprido, e pensamos nós que parcialmente estamos satisfeitos”, disse.
No monte Sumi, para onde se tinham deslocados os polícias para dar cumprimento a um mandado de captura, na sequência de outro caso de violência na província vizinha do Bié, foram mortos o comandante da Polícia Nacional da Caála, o chefe de operações da Polícia de Intervenção Rápida no planalto central, o delegado do Serviço de Inteligência e Segurança Interna da Caála, o instrutor da Polícia de Intervenção Rápida no Huambo, um primeiro subinspector e quatro agentes.
Além de José Julino Kalupeteka foram condenados, na mesma altura, sete outros seguidores da seita, a 24 anos de cadeia e outros dois a 16 anos cada um.
(Mais) uma história mal contada
Quem esperava que o julgamento desta seita permitiria, mesmo que de forma ténue, esclarecer os acontecimentos de Abril de 2015, viu esse desejo frustrado.
Recorde-se que, em comunicado de imprensa, a organização não-governamental britânica Human Rights Watch (HRW), sob o título “Houve um massacre no Huambo, Angola?” considerava que o julgamento “pode, finalmente, lançar luz sobre os eventos”.
Aquela organização de defesa dos direitos humanos salientava ser “evidente que a morte indiscutível de nove agentes da polícia requer justiça e que as autoridades devem certificar-se de que o tribunal é capaz de conduzir o julgamento de forma independente, imparcial e competente”.
A HRW defendia ainda que as testemunhas do governo no julgamento “também devem ser transparentes quanto à conduta da polícia e dar resposta às acusações de que dezenas de pessoas desarmadas, incluindo mulheres e crianças, podem ter sido assassinadas a tiro”.
“O conflito eclodiu quando a polícia procurou levar Kalupeteka para interrogatório com base em alegações de incentivo à desobediência civil de cerca de 2.000 dos seus fiéis. Kalupeteka liderava uma facção dissidente da Igreja Adventista do Sétimo Dia que acreditava que o mundo iria acabar em 2015 e havia encorajado os fiéis a abandonar as respectivas vidas e a retirar-se para um campo isolado”, recordou a HRW.
O governo negou que tenham morrido dezenas (muito menos centenas) de pessoas, como sustentam grupos de oposição e activistas nacionais e internacionais, mas recusou o pedido de acesso ao local dos acontecimentos feito também pelo Alto Comissariados da ONU para os Direitos Humanos “para a abertura de uma investigação independente”.
Após o incidente, as forças de segurança angolanas isolaram a área, “declarando-a zona militar”.
“Os activistas dizem que os soldados enterraram um elevado número de cadáveres em valas comuns e vários familiares de membros da seita declararam que ainda não foram capazes de enterrar os seus entes queridos. Somente duas semanas após o incidente foi concedido acesso ao local a um pequeno grupo de deputados e jornalistas, a quem foi feita uma visita orquestrada e vigiada de perto”, acrescentava a HRW no seu comunicado.
“O julgamento de Kalupeteka sublinha a necessidade de justiça, tanto para as famílias dos agentes assassinados como para as famílias dos membros da seita que morreram. O julgamento deverá apresentar as investigações internas do próprio governo sobre os acontecimentos que, de uma forma ou outra, deveriam ser tornadas públicas pelo governo”, defendeu a HRW.
A ONG britânica questiona, em conclusão, que se “afinal nada há a esconder, por que razão deverão os relatórios manter-se confidenciais? E por que não permite o governo uma investigação independente ao que aconteceu?”.
Verdade ficou numa vala comum
A UNITA afirmou no dia 26 de Abril de 2015 que os confrontos no Huambo, entre uma seita religiosa e a polícia, terminaram com 1.080 mortos civis, contra os 13 reconhecidos pelas autoridades angolanas.
A posição foi assumida pelo então líder parlamentar do maior partido da oposição, Raul Danda, depois de um grupo de deputados da UNITA ter terminado uma visita de três dias ao Huambo, para avaliar os acontecimentos de 16 de Abril, que envolveram elementos da igreja “A luz do mundo”, também conhecida por Kalupeteka, e a polícia, quando tentavam capturar o líder desta organização.
“Ninguém se pode sentir bem, posso dizer que não tivemos um sono tranquilo. Foi feita uma chacina em nome de qualquer coisa que a gente não consegue perceber”, afirma Raul Danda.
Depois de Jonas Savimbi, que para além de um elevado e socialmente transversal poder de oratória e persuasão, tinha um poderio militar que usava para aliar a força da razão com a razão da força, Angola não conheceu outro líder de massas.
Foi então que pareceu, obviamente noutra escala, apenas com um poder de persuasão capaz de arrastar tantos e tantos populares para uma peregrinação religiosa, José Julino Kalupeteka.
Desde logo, Kalupeteka revelou-se uma forte ameaça aos “supermercados da fé”, do tipo da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e outras que fazem do dízimo forçado, uma condição para se ser crente.
Mau grado a vontade do regime, não há relato de Kalupeteka ter pedido um Kwanza, uma galinha, um boi ou um saco de milho a um dos seus seguidores. Todos o seguiram, voluntariamente, com base numa crença, descrentes que estavam – como a esmagadora maioria dos angolanos – na responsabilidade social do Governo.
Kalupeteka reeditou, urge dizê-lo, a história das grandes peregrinações (que fazem parte da História de África), em que os pastores ou messias arrastavam multidões descrentes do poder da monarquia.
Do ponto de vista oficial, expresso por tudo quanto é órgão do regime, Kalupeteka violou quase toda a Constituição. Não há crime que não lhe tenha sido imputado. No entanto, em nenhum momento ele violou a Constituição e a leis em vigor em Angola.
Foto: Fernando Kalupeteka, filho de José Julino Kalupeteka, em conversa com o Folha 8, em Julho de 2015.
Folha 8 com Lusa